sábado, 7 de março de 2020

À vida

(sem título)
Caio Fernando Abreu

Eu quero a vida.
Com todo o riscos
eu quero a vida.
Com os dentes em mau estado
eu quero a vida
insone, no terceiro comprimido para dormir
no terceiro maço de cigarro
depois do quarto suicídio
depois de todas as perdas
durante a calvície incipiente
dentro da grande gaiola do país
de pequena gaiola do meu corpo
eu quero a vida
eu quero porque quero a vida.
É uma escolha. Sozinho ou acompanhado, eu quero, meu
deus, como eu quero, com uma tal ferocidade, com uma tal
certeza. É agora. É pra já. Não importa depois. É como a quero.
Viajar, subir, ver. Depois, talvez Tramandaí. Escrever. Traduzir. Em solidão. Mas é o que quero. Meu deus, a vida, a vida, a vida.
A VIDA
À VIDA

*poema lido ao final da leitura dramática de 14/02 

Se a peça fosse terminar com um poema, provavelmente eu escolheria esse. 

sexta-feira, 6 de março de 2020

Sonhos não envelhecem



A chama não tem pavio 
De tudo se faz canção 
E o coração na curva de um rio

Por muito tempo, esta era a abertura da peça.
E, apesar de não ser mais, continua representando muito para mim o tema dela.
A esperança, a busca, o sonho, a gente...


Roupa no varal


Casa de mãe tem roupa lavada. 
Tem comida na mesa. 
Tem colo e companhia.

Quando penso com saudades na casa da minha mãe, a primeira coisa que me vem à mente é o varal cheio de roupas e eu correndo para esvaziá-lo antes da chuva molhar tudo. Era uma das minhas atividades favoritas, estender e recolher a roupa. Cantava, imaginava que as roupas eram alguma outra coisa e aquela tarefa era uma missão super divertida.
Hoje, não lavo minhas roupas em casa e o varal que tenho é pequeno. É apenas mais uma tarefa burocrática. A magia está sumida. Mas permanece na memória, com um gostinho agridoce que a infância passa a ter, como se a preservássemos numa conserva de vinagre.
O gostoso de lembrar da casa dos pais está nesses pequenos rituais bucólicos e a segurança que saber que eles aconteceriam nos proporcionava.


obs: a foto foi encontrada no Twitter, infelizmente eu perdi o link. 




O início

Tudo começou em dezembro de 2015. 
Eu tinha 20 anos. 
Ainda cursava Letras Francês. 
Fazia parte de uma companhia de teatro musical e para 2016, a ideia era criar um espetáculo novo, autoral. Aceitei a tarefa, apesar de, naquela época, ainda não ter me aventurado como dramaturgo.
Durante as  férias de dezembro-janeiro, comecei a desenvolver ideias, personagens, buscar referências. Poucas exigências haviam sido feitas. Queriam apenas que não houvessem muitos personagens, que as músicas fossem bem conhecidas (seria um jukebox)e que representasse a pluralidade brasileira. Experimentei alguns conceitos diferentes (como uma narrativa episódica de roadtrip) até que O Cortiço de Aluísio de Azevedo (livro que tive que ler no segundo ano) me reapareceu ao acaso e me deu a ideia de uma pensão. Assim, poderia ter personagens de diferentes lugares vindo, em vez de ter que ir até eles. Isso me permitiria mais liberdade em seus desenvolvimentos, e, por eu também ter saído de casa, a história ganharia contornos muito mais pessoais e os dilemas dos personagens ficariam muito mais próximos de mim. 
Definido o tema, parti em busca dos personagens e das músicas. Conforme os personagens foram ganhando corpo, comecei a ter em mente seus arcos e os temas que queria abordar com cada um. Assim, conseguia relacionar com as músicas que já tinha selecionadas. Antes mesmo da pesquisa começar, já tinha algumas que considerava essenciais e faria de tudo para encaixá-las: Ideologia, de Cazuza; Águas de Março, de Tom Jobim e O mundo é um moinho, de Cartola. Último desejo, de Noel Rosa, foi um achado e acabou determinando o destino de uma das personagens, Letícia
Em janeiro de 2016, eu já tinha os personagens e o primeiro "esqueleto" da peça definido. É uma espécie de sumário que faço de cada acontecimento importante (não necessariamente cada cena) por ordem e, nesse caso, suas músicas, para assim, ir preenchendo durante a escrita. Me evita de perder o foco e, caso eu empaque em determinado ponto, posso pular este e continuar depois. 
A primeira versão da peça chamava-se Esquina dos sonhos e era mediana. Sendo generoso. Os personagens, eventos e a própria peça, eram ainda um conceito cru e mal desenvolvido do que poderiam e viriam a ser. E eu sabia disso. Continuei trabalhando mensalmente em reescritas, enquanto esperava alguma resposta e direcionamento dos diretores da companhia.  
No meio do ano, metade dos personagens tinham ganhado outro nome, boa parte das músicas tinham sido trocadas ou mudado de lugar e a peça já estava em sua vigésima versão (número não exato). Estava claro também a essa altura, que a companhia não iria voltar de seu hiato tão cedo e, assim, tomei o projeto como inteiramente meu. Removi tudo que não me agradava, todas as músicas que estavam lá por serem famosas e adicionei músicas desconhecidas que eu gostava. A partir daí, a peça foi ganhando um caráter mais sério e pessoal, visto que agora eu não esperava opinião de mais ninguém e as ideias e aprovações destas vinham só de mim. Fiquei nesse processo até o final de 2017. Durante esse período, a companhia voltou, tentei "vender" meu projeto a ela, escrevi e atuei em outras peças dentro da companhia, saí dela, guardei a sete chaves o projeto e fui atrás de pessoas que se interessariam em participar. 
Consegui. 
Perdi algumas. 
Consegui outras. 
Perdi essas também. 
E assim, durante o ano de 2018, nesse troca-troca de elenco, tentei montá-la. Sem muito sucesso, mas sem tanto fracasso assim. 
2019 chegou e com ele, eu prometi ir atrás de tudo o que precisava para montar a peça antes de voltar a ensaiá-la. Em março, depois de certa resistência, abri o documento e retirei todas as músicas. Ficava decidido então que as músicas seriam originais. 
Coloquei um anúncio procurando um músico, em maio consegui uma resposta. Não foi pra frente. Algum tempo depois, outra. O Lucas. A pessoa certa. Identificou-se com o projeto, a proposta, queria trabalhar com teatro. Trouxe composições lindas e um olhar externo que eu estava precisando. 

Hoje, a peça parece mais pronta. (Porque eu vou sempre ter algo para mudar.)
Hoje, parece um momento mais certo para fazer acontecer. 
Hoje, eu pareço mais preparado para isso.    

Sonhos não envelhecem
Clube da esquina n°2